Folha de S. Paulo - Revista da Folha 23/03/2008 Maeli Prado Como as regras do Batalhão de Operações Especiais, da pm do rio, que inspirou o premiado e polêmico "Tropa de Elite", viraram bíblia de palestras e são aplicadas no dia-a-dia de grandes empresas
Reinaldo Óscar/Divulgação
 | | Funcionários cumprem "missão" dentro d'água
"Tropa de elite, osso duro de roer, pega um, pega geral, também vai pegar você." Os versos da trilha sonora do filme brasileiro mais visto e comentado dos últimos tempos ecoam no pequeno auditório em uma das ?liais da seguradora Unibanco AIG, em um casarão da avenida Brasil, em São Paulo. São 20h de uma quinta-feira, 28 de fevereiro, quando o "caveira 69", Paulo Storani, 45, ex-capitão do Bope (Batalhão de Operações Especiais), é anunciado à platéia. Na tela de projeção, um slide com a frase "Construindo uma Tropa de Elite" esclarece o motivo do improvável encontro de mundos: um ex-policial do grupo de operações especiais da Polícia Militar do Rio e vendedores de seguro paulistanos.
Sob aplausos, o palestrante entra na sala repleta e grita: "Caveira!" Storani, que está se convertendo em estrela do segmento motivacional, recebe de volta, em uníssono, a saudação, típica dos oficiais do batalhão. Entre os 60 ouvintes, estão clientes e funcionários da quarta maior seguradora do país. A maioria é de homens engravatados ou de camisa social. Poucas mulheres, de tailleur e salto alto, arriscam-se no ambiente nitidamente masculino.
Storani veste terno e gravata como os integrantes de sua platéia, mas fala e age como um líder do Bope, corporação onde trabalhou por três anos e que abandonou há dez. "Volta aí, o senhor está muito rápido", ordena, em tom de brincadeira. É prontamente atendido pelo funcionário que troca os slides. Em seguida, exibe fotos do treinamento que deu aos atores de "Tropa de Elite", ainda na fase de pré-produção do longa. Faz piadas com o fato de ter levado um soco na cara do protagonista Wagner Moura, que personificou o Capitão Nascimento.
Depois do rápido preâmbulo, o palestrante chega ao ponto: "Você é um operação especial ou é um convencional na sua atividade? O convencional é o invertebrado, é quem desmonta no primeiro tiro ou na primeira meta [de vendas]".
Storani inflama a platéia com a terminologia usada pelos policiais no filme. "E quem não está satisfeito...", provoca ele. O público reage, de pronto. "Pede pra sair!", respondem os engravatados, usando o bordão que tomou conta do país logo após o lançamento do filme em outubro do ano passado.
Àquela altura, uma hora depois do início da preleção, a audiência está bem familiarizada com as lições de Storani. Seu manual evoca paralelos entre as regras do batalhão e as do mundo corporativo: naquele contexto, o jargão do Bope "missão dada é missão cumprida" ganha a conotação de "meta dada é meta cumprida". "Vá e vença" vira "vá e venda". Alguns riem, um pouco constrangidos. Muitos balançam a cabeça em sinal de concordância. Por volta das 21h30, o "grand finale". Liderados pelo palestrante, todos gritam: "Eu sou caveira!"
As cenas presenciadas pela Revista viraram rotina na vida de Storani. Ele começou a dar palestras motivacionais em outubro e está com agenda lotada até maio. Nesse ramo, os cachês costumam variar entre R$ 5.000 e R$ 10 mil.
O ex-capitão do Bope já falou para funcionários de bancos, de montadoras, de indústrias das áreas têxtil e de tecnologia. Virou guru de executivos. "O conceito de superação de limites e de encarar as adversidades com naturalidade pode ser aplicado à iniciativa privada. Montei a palestra e me surpreendi com os resultados", afirma Storani, mestrando em antropologia, com dissertação sobre o Bope. Ele ainda concilia a agenda de palestrante com o cargo de secretário de Segurança Pública de São Gonçalo, município do Rio.
Pedindo para sair Os mais empolgados levam os conceitos para dentro das empresas. Não falta nem a caveira, símbolo máximo dos policiais durões do batalhão. "Quando alguém consegue bater a meta, faz no computador um bonequinho com a caveira do Bope e manda por e-mail", conta Patrícia Olivani, 36, coordenadora de vendas do Unibanco AIG. "Nas palestras, fazemos uma auto-reflexão, buscando as características do 'caveira' dentro da gente."
Gustavo Rosset, 33, diretor comercial da Rosset Têxtil, proprietária de marcas como a Valisère e Cia. Marítima, foi além, depois de contratar a palestra do ex-capitão no início de fevereiro. "Na empresa, a gente agora só se chama por número", afirma. No filme, Capitão Nascimento trata os subordinados de aspira 01, 02 e assim sucessivamente, durante o duro treinamento para ser aceito no batalhão de elite.
Rosset conta que, depois da palestra de Storani, dois funcionários "pediram pra sair". Na telona, a expressão sintetiza o momento da desistência daqueles que, por exaustão ou fraqueza, não vão se tornar "caveira". "Um [pediu pra sair], três dias depois da palestra, e outro, 15 dias depois, porque viram que o bicho ia pegar", diz o diretor e herdeiro da Rosset Têxtil, maior grupo brasileiro no segmento de tecido de lycra, com 3.000 funcionários.
O empresário mandou colocar, na sede da empresa, em São Paulo, banners pretos com a caveira e dizeres do Bope. "Temos que tirar as pessoas da zona de conforto", afirma Rosset. "Elas começam a fazer um paralelo entre suas vidas pessoais e profissionais com a vida dele [Storani], que era subir morro e lidar com o tráfico."
O discurso de André Rutowitsch, 36, diretor-executivo da Unibanco AIG, vai em outra direção. "Todos os anos contratamos vários palestrantes para falar com os nossos clientes, sempre voltados para esse lado motivacional. Nos últimos anos, tivemos o Bernardinho [técnico da seleção brasileira de vôlei] e agora trouxemos o Storani", afirma. "Ele é alguém que fala de liderança, de trabalho em equipe, e fala do batalhão de uma forma alegórica. Buscamos, o tempo todo, que não haja uma associação muito direta com o filme."
O executivo diz que a pressão sobre os profissionais está presente em toda empresa. "Quando existem metas a serem cumpridas há uma pressão inerente ao negócio em qualquer ramo de atividade."
Caveiras e invertebrados A filosofia para se tornar oficial do batalhão é muito clara: o mundo se divide entre caveiras (como são chamados os policiais do grupo especial) e invertebrados (os fracos, que não agüentam a pressão). Os primeiros fazem o impossível, mesmo em condições extremamente adversas. "A dona-de-casa que sustenta todos os filhos sozinha e não desiste é caveira. O vendedor que bate suas metas é caveira", compara Storani.
Misturar os dois universos desperta críticas. "Se é capitalismo selvagem, talvez uma abordagem de guerra seja uma boa idéia", ironiza Marcelo Neri, economista-chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, ao comentar as palestras.
"Ninguém abre empresa para fazer caridade, vivemos em um mundo capitalista", diz Storani. "O invertebrado é a pessoa que não está habituada a lidar com pressão, e isso não é demérito nenhum." Continuando com a analogia, ele ressalta que no Bope tem gente que não consegue se adaptar às exigências do batalhão e vai fazer policiamento comunitário. "É a mesma coisa com vendedores: é uma profissão que exige saber lidar com a pressão de ouvir um não e mesmo assim continuar tentando convencer alguém a comprar."
É legítimo transpor os métodos do Bope, que muitos consideram questionáveis até mesmo na guerra urbana, para o universo das empresas? Para Viviane de Oliveira Cubas, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP, usar tática de guerra em outro ambiente é desumanizador. "É característica do mundo empresarial exigir uma eficiência cada vez maior dos seus funcionários, dar responsabilidades cada vez maiores", afirma. "Você estabelece metas que às vezes não são reais. O que essa pressão e essa cobrança constantes podem causar à saúde desses funcionários?"
Um dos autores de "Elite da Tropa" (livro que originou o filme) e um dos roteiristas de "Tropa de Elite", o ex-capitão do Bope e sociólogo Rodrigo Pimentel, 37, também se converteu em palestrante. Faz entre quatro e cinco preleções por mês em empresas.
"A primeira coisa que eu falo é: 'Não vão bater nos seus vendedores'", diz ele, que foi contratado para falar a funcionários de empresas, como Perdigão, gigante do ramo alimentício, e até multinacionais farmacêuticas.
Um dos temas de seus discursos é "a força de um símbolo". "Toda empresa tem símbolos e lemas", compara. "Também existe sempre um ritual de passagem, estabelecido quase sempre em função das dificuldades de pertencer a um grupo."
Ao analisar esse tipo de palestra, o psicanalista Jorge Forbes aponta fragilidades. "Todos os discursos motivacionais são reducionistas da experiência humana. São uma tentativa de estimular a adesão a uma corporação apelando para o narcisismo. Quem não adere deve se envergonhar", diz o psicanalista, ao analisar o estímulo exagerado à competição e à superação de limites tão em voga no dicionário corporativo e reforçado nessas palestras. "De qualquer forma, é um discurso velho que vem com uma nova roupagem."
Capitão galã O diretor José Padilha, assim como o comando do Bope, não quis se manifestar sobre o novo fenômeno das palestras motivacionais, mais um subproduto do sucesso do filme. Muito se falou sobre o impacto de "Tropa de Elite" sobre a sociedade brasileira: das discussões sobre tortura policial e do papel da classe média no tráfico de drogas a programas de TV como o "Bofe de Elite", na Rede Record, com o qual Tom Cavalcante bateu a Globo em audiência.
De polêmica em polêmica, o mercado continua surfando na onda de sucesso do longa. Em pesquisa encomendada pela rede varejista Marisa para descobrir qual seria o "homem ideal" na opinião das brasileiras, Wagner Moura recebeu 90% dos votos. O Capitão Nascimento da ficção ficou à frente de galãs "clássicos" como Reynaldo Gianecchini e Fábio Assunção. Foi contratado como novo garoto-propaganda da marca.
Em resposta à jogada de marketing da concorrente, as lojas Renner contra-atacaram com o lançamento há dois meses de uma coleção de camisetas com expressões do filme, como "fanfarrão" e "aspira", gravadas no peito. A linha já esgotou. Outra marca, a goiana Eckzem, também criou uma camiseta com uma estampa que mostra um desenho do Capitão América, herói de quadrinhos americano, com o nome "Captain Nascimento". Ao lado, o jargão mais famoso do filme: "Pede pra sair!".
Transformar um policial truculento e angustiado como Capitão Nascimento em herói, seja em camisetas ou diante de uma platéia de vendedores, deixa surpreso o ex-governador de São Paulo, Cláudio Lembo, que enfrentou uma gravíssima crise de segurança pública com os ataques do PCC em 2006. "Uma coisa é respeitar a polícia, outra é transformar os policiais em heróis", afirma.
Para Lembo, o sucesso do filme reflete a insegurança da sociedade. "Principalmente de uma classe média desesperada por segurança, que adora o herói que vai protegê-la de todos os perigos." Quanto aos treinamentos motivacionais em empresas, o ex-governador também faz ressalvas. "Todos nós, sejamos do Bope ou não, somos humanos e não podemos ir além dos nossos limites."
Quem ultrapassou fronteiras foram os integrantes de um grupo de strippers, "Os Sedutores". Eles começaram a se apresentar vestidos de oficiais do Bope e com metralhadoras em uma casa de suingue em São Paulo. O cachê de cada um dos sete componentes é de R$ 150 por apresentação de 45 minutos. "Essa coisa de Bope mexe com a fantasias das mulheres", constata Alexandra Valença, 26, coreógrafa do grupo. Uma prova de que nem a libido dos brasileiros ficou imune ao fenômeno cinematogrático.
A influência do longa em terrenos tão distintos pode ser explicada na diversidade de interpretações que a produção oferece. "Quem tem algum tipo de orgulho militar se vê ali, quem tem críticas sociais à elite brasileira se vê ali, quem critica o bom mocismo exagerado das ONGs se vê ali", afirma Forbes. Uma identificação que lotou as salas de cinema e agora enche auditórios. Neste caso, com uma platéia dividida entre aqueles que aplaudem e aqueles que se arrepiam diante dos jargões usados pelo Capitão Nascimento. Em cartaz, mais uma polêmica de "Tropa de Elite". |
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